Evidências científicas da psicanálise
Pela Dra. Claudia Maquiaveli
17 de setembro de 2023
Evidências científicas da psicanálise
Pela Dra. Claudia Maquiaveli
17 de setembro de 2023
Muitos de vocês devem estar se perguntando, quais as evidências científicas de uma terapia secular como a psicanálise? A teoria Freudiana e a prática clínica da psicanálise passariam pelo crivo da ciência de hoje? A psicanálise é ciência? Você se submeteria a um processo longo em que não há evidências científicas?
Em primeiro lugar a disciplina que estuda se um determinado conhecimento é científico ou não é a Filosofia da Ciência, é ela quem discute do ponto de vista de várias correntes da Filosofia se um determinado conhecimento pode ser considerado ciência ou não. O ponto mais relevante dessa nossa conversa serão as evidências científicas do tratamento psicanalítico. Deixemos essa discussão filosófica para meus queridos colegas pesquisadores da área da Filosofia da Ciência. No entanto, vou comentar um pouco sobre uma dessas correntes filosóficas científicas que colocam a psicanálise para a terceira divisão, ok? Se seguirmos a corrente Filosófica de Karl Popper (1902 a 1994), um importante filósofo austríaco, na qual a falseabilidade é um dos aspectos necessários para confirmar se um determinado conhecimento é científico ou não, provavelmente, muitas das teorias Freudianas não poderiam ser falseadas, portanto, psicanálise não seria ciência.
Princípio da falseabilidade, o que seria isso?
Segundo Popper, para que uma teoria seja capaz de ser falseável deve conter hipóteses negadas. Por exemplo, se minha hipótese é de que no planeta só existem cisnes brancos, essa hipótese é falseável, ou seja, podemos comprovar que não há somente cisnes brancos, porque ao observamos a natureza verificarmos os cisnes pretos. Tudo bem, mas o que não pode ser falseável na psicanálise? A própria hipótese do inconsciente não pode ser falseável, porque o material psíquico contido nele não pode ser comprovado do ponto de vista neuroanatômico e neurobioquímico. Embora, a Neurociência já tenha trazido a tona várias funções inconscientes do Sistema Nervoso Central, Autônomo e Gastrointestinal, quanto aos pensamentos e decisões, não há como comprovarmos que há um inconsciente Freudiano com um conteúdo recalcado, cheio de pulsões sexuais, que possam determinar nossa forma de agir. Não há instrumentos de neuroimagem, bioquímicos ou celulares que consigam provar, através da observação empírica, se o inconsciente Freudiano existe. Dessa forma, seria como discutir se Deus existe? O que tornaria a psicanálise um conhecimento dogmático. Afinal, o inconsciente Freudiano é uma definição, uma teoria, uma hipótese que se atesta na clínica.
Tudo bem, mas também se analisarmos que não conseguimos descobrir onde está o amor, o medo, a angústia, ou seja, todos os afetos, podemos entender o que Freud e seus sucessores estão propondo em relação à subjetividade. Segundo a teoria Freudiana, os afetos são separados das representações (fato ocorrido), que ficam como memórias esquecidas. Esses afetos livres de suas representações juntam-se a fatos do presente e fazem com que a pessoa sinta angústia, mas não sabe o porquê. No caso dos afetos citados acima, o que conseguimos observar, através dos estudos de neurociências, é que determinadas áreas cerebrais e substâncias neurobioquímicas são acionadas e produzidas quando alguém os descreve ou quando se observa um comportamento ligado a esses afetos. Portanto, vários aspectos do sujeito humano não podem ser falseáveis, isso não significa que ao descrevê-los e observá-los não estamos produzindo ciência. Querer colocar todo conhecimento científico em um único compartimento dentro da visão Popperiana, é tornar a mente humana algo muito reduzido, na qual não conseguimos explicar todos os fenômenos. Esse modo ideológico de pensar ciência é o que conhecemos como cientificismo e reducionismo. Nesse ponto, várias ciências humanas seriam descartadas como ciência, a história, sociologia, partes não mensuráveis da geografia, e a própria filosofia. Trabalhos de pesquisa nas áreas de arte, poesia e literatura, também teriam que ser descartados como produção científica.
" Pesquisas recentes têm demonstrado que não há evidências de que o complexo de édipo possa produzir qualquer núcleo traumático na infância. Seria essa uma hipótese Freudiana falseável?"
Psicanálise é ciência?
No Brasil a psicanálise é exercida de forma livre, como um ofício, mas está presente nas principais Universidades públicas e privadas, onde há um departamento de psicologia ou psiquiatria, em que dissertações, teses e publicações científicas são produzidas. Em outros países como Argentina, Inglaterra, Portugal, Alemanha, Estados Unidos ela também é muito difundida nos departamentos de pesquisa. Mas, na maioria dos trabalhos científicos publicados, a psicanálise está inserida dentro das Psicoterapias psicodinâmicas. A psicoterapia psicodinâmica é um conjunto de terapias que se originaram a partir da psicanálise clássica. Quando analisamos os trabalhos dos psicoterapeutas contemporâneos, inclusive o meu trabalho, observamos que psicólogos e psicanalistas, independente da teoria psicanalítica que seguem, praticam a psicoterapia psicodinâmica.
O que elas têm em comum? São terapias baseadas no inconsciente como uma instância, onde são guardados conteúdos recalcados, principalmente, relacionados às relações parentais da criança, ou seja, que podem ser conteúdos traumáticos ou de fixação. A hipótese seria que esses conteúdos quando trabalhados nas sessões de terapia e trazidos a consciência, baseado na relação terapêutica (transferência), poderiam ser ressignificados, elaborados e reconstruídos, o que traria alívio ao sofrimento psíquico do paciente. Essa hipótese da psicanálise tem muitas evidências científicas. Mas a pergunta que não quer calar: psicanálise é ciência? Muitos pressupostos da psicanálise não passam pelo crivo Popperiano, mas temos inúmeras evidências científicas da eficácia da psicanálise em diversos tipos de transtornos de personalidade e de doenças graves mentais. Além disso, todos os dias, parte da teoria Freudiana é refutada, reformulada pelos próprios pesquisadores da psicanálise. Se olharmos para essas evidências e para os inúmeros trabalhos na área da neurociência, que se basearam nas teorias Freudianas, poderíamos afirmar que a psicanálise é ciência. No entanto, a psicanálise também é ofício e arte. Como diria Freud (1856 a 1932), ela é a cura pelo escuta e amor. Por isso, para alguns leigos e pesquisadores brasileiros, Freud é um cientista que se tornou centenário, obsoleto e charlatão! Ultimamente, amor virou sinônimo de Ocitocina, como se o amor pudesse ser totalmente explicado por apenas uma única substância química! Ledo engano! Lembra do reducionismo?
Outra questão a ser levantada é que alguns críticos da psicanálise, e uma corrente muito grande de pesquisadores brasileiros cientificistas, reducionistas e positivistas, pregam que a psicanálise não é baseada em neurociência. O que contradiz o que os melhores neurocientistas do mundo relatam sobre a psicanálise, um deles é Eric Kandel, ganhador do prêmio Nobel em 2000. A psicanálise já contribuiu e muito para o conhecimento neurocientífico, hoje a neurociência é quem tem contribuído para o entendimento de muitas das hipóteses propostas por Freud e seus sucessores. De qualquer forma, nas universidades brasileiras há uma contribuição muito grande de pesquisadores das áreas da psicologia, psiquiatria, neurociência, filosofia, arte e letras na produção de trabalhos científicos baseados nas teorias psicanalíticas e vice-e versa.
" Freud desenvolveu a psicologia, a psicanálise, que é uma teoria de psicologia cognitiva. Ele achava que, algum dia, um biólogo reforçaria partes de sua teoria, desmentiria outras. Ele estava preparado para ter sua teoria desmentida. Eu acho que a teoria tem verdades interessantes e muito importantes. A percepção mais importante dele foi a de que grande parte de nossa vida mental é inconsciente ".
Eric Kandel, 2011.
Evidências científicas da eficácia da psicanálise através das psicoterapias psicodinâmicas
Agora vamos falar um pouco de estudos clínicos, assim posso continuar fazendo o meu trabalho clínico sossegada; e meus analisantes, que gostam de ciências, assim como eu e o tio Freud, possam ter uma justificativa baseada em evidências para estarem se submetendo a um trabalho psicanalítico. Opa, seria isso um sintoma neurótico? Pode ser, mas no mínimo é um direito àqueles que querem receber um tratamento baseado em evidências científicas. Como são muitos trabalhos, lembrando que na psicanálise, como em qualquer psicoterapia, cada resultado clínico é individual, vou apresentar duas importantes pesquisas. Dois critérios para essa apresentação foram norteadores: a qualidade da revista científica na qual esses trabalhos foram publicados e artigos que contemplem uma revisão baseada em metanálise, utilizando o resultado de pesquisas clínicas realizadas nos últimos 10 anos.
Um dos trabalhos mais importantes foi sobre um estudo publicado na revista The Lancet Psychiatry (Leichsenring e cols, 2015), que demonstrou que a Psicoterapia psicodinâmica (PDT), que inclui uma família de abordagens psicoterapêuticas tendo em comum um foco na identificação de padrões recorrentes de relacionamento consigo mesmo e com os outros (incluindo o relacionamento terapêutico) e de expressão de emoção, a exploração de padrões defensivos e a discussão de experiências passadas que têm impacto nas experiências atuais da pessoa, são eficazes para transtornas de personalidade, depressão, esquizofrênia e transtorno de ansiedade. Essa é uma das revistas de maior impacto na ciência e na área psiquiátrica, com alto grau de exigência metodológica, inclusive seguindo os pressupostos Popperianos.
Um estudo de metanálise engloba vários ensaios clínicos randomizados, com terapeutas treinados e baixa variação dos resultados. Todos critérios científicos exigidos para se recomendar o uso da PDT, incluindo a psicánalise, no tratamento de doenças mentais para a saúde pública.
O mesmo grupo de autores, publicaram esse ano, no jornal World Psychyatry (Fator de impacto 79,6)*, uma revisão do primeiro artigo publicado na The Lancet Psychiatry em 2015, ainda mais criterioso, pois compararam a eficácia das Psicoterapias psicodinâmicas (PDT) com as Psicoterapias ativas atuais, consideradas como sendo baseadas em fortes evidências científicas. Os autores não verificam diferenças entre as PDT e as Psicoterapias ativas (Lieichsenring e cols, 2023). O que reforça a evidência científica da eficácia dessas psicoterapias. Nesse trabalho, os autores também verificaram que houve uma diferença significativa em relação ao grupo controle, desconsiderando que os resultados pudessem estar correlacionados ao efeito placebo. As PDT foram eficazes no tratamento dos transtornos de personalidade, ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas. Elas não apresentaram evidências fortes para o tratamento do Transtorno bipolar e obsessivo compulsivo, devido ao número reduzido de trabalhos clínicos relacionados a essas psicopatologias, o que demonstra que precisamos realizar mais estudos clínicos com esses pacientes.
* fator de impacto de uma revista científica mede a qualidade, o rigor científico e a importância de uma revista científica. Para termos uma ideia a Nature e a Science, duas revistas citadas como as mais importantes para ciência, tiveram como fator de impacto no ano de 2023 69, 054 e 66,832, respectivamente.
Não vou colocar mais trabalhos, porque a conversa já está longa, mas há evidências de eficácia para o tratamento dos Transtornos de personalidade bordeline, esquizofrenia, ideações suicidas e outros. Aqui deixo o link do canal do Youtube Falando nisso, do nosso querido professor Dr. Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, psicólogo e psicanalista, pesquisador renomado na área da psicanálise e o link 👇 com a lista de referências que ele apresentou no vídeo intitulado " Psicanálise é pseudociência?" . Se você tiver um tempinho não deixe de assistir!
O importante é que precisamos sim fazer mais pesquisas em psicanálise. Devemos estar cientes de que quanto mais abordagens terapêuticas forem eficazes do ponto de vista científico, melhor será para todos os humanos. Por outro lado, se é necessário pensarmos em evidências científicas, também é imprescendível que cada pessoa tenha o direito de escolher o tratamento que apresente o melhor resultado, mas que leve em consideração a subjetividade. Essa é a conclusão dos autores dessas duas importantes publicações.
Referências
Harari E, Grant DC. Clinical wisdom, science and evidence: The neglected gifts of psychodynamic thinking. Aust N Z J Psychiatry.Volume 56, Issue 6, 2022 Jun, p.594-602.
Kupfersmid J. Freud's Clinical Theories Then and Now. Psychodyn Psychiatry. Volume 47, Issue1, 2019 Spring, p.81-97.