Será possível que a inteligência artificial (IA) possa incorporar a *terceira tópica não freudiana?
Será possível que a inteligência artificial (IA) possa incorporar a *terceira tópica não freudiana?
Poderíamos estar a um passo de vivermos as experiências científicas descritas nos livros “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley (1932) e “Eu, robô” de Isaac Asimov (1950). O imaginário desses autores nos levou a temer que o mundo guiado pela descoberta do genoma e o desenvolvimento da inteligência artificial nos desumanizariam e nos causariam assujeitamento. Apesar de todo esse medo, tenho observado que estamos descobrindo que a inteligência artificial (IA) estaria mais próxima do sujeito do inconsciente freudiano do que nosso imaginário poderia prever. Logo Freud, que evidenciou a importância do inconsciente para a psicologia moderna. Ele que nos lançou a um só golpe a terceira ferida narcísica: “O ego não é senhor da sua própria casa”.
Primeira tópica freudiana
Conforme a primeira tópica freudiana, as pulsões, uma energia libidinal deslocada do inconsciente, seriam regidas pelo princípio do prazer. O princípio do prazer consistiria em um estado de constância da energia do aparelho psíquico. De forma que as pulsões ao se deslocarem do inconsciente aumentariam a tensão do aparelho psíquico, causando desprazer. Dessa forma, as pulsões buscam um objeto para a descarga e satisfação. Além disso, as pulsões sexuais infantis, carregadas de afetos moralmente proibidos, deveriam ser reprimidas. Dentro dessa dinâmica, participariam as barreiras do recalque, entre o consciente, pré-consciente e inconsciente, impedindo essas pulsões de se tornarem conscientes e atingirem seus objetos. Portanto, mediados pelo princípio do prazer e pelo recalque, as pulsões de vida, amor, ódio, masoquistas e sádicas são parcialmente descarregadas, principalmente no corpo, são convertidas em sintomas neuróticos (conflituosos) e produções do inconsciente, como os sonhos
Segunda tópica freudiana
Para Freud, antes da elaboração de Além do princípio do prazer (1920) e O ego e o ID (1923), o inconsciente seria regido pelo princípio do prazer e os sonhos seriam manifestações de desejos. No entanto, a partir do atendimento de soldados, combatentes na Primeira Guerra Mundial, que apresentavam a neurose de guerra, iniciou-se uma nova teoria das pulsões. Havia nesses pacientes um tipo de pulsão de morte, que não tinha como objetivo final a satisfação de um desejo, mas a redução máxima da tensão provocada pelo prazer (sadomasoquista) ou pelo trauma de guerra. Diferente do que havia antes observado nas histéricas, o destino dessas pulsões não tinha como objetivo a descarga para manter a energia constante, mas o retorno a um estado inorgânico (morte). Esses pacientes repetiam continuamente seus sonhos traumáticos. Freud, reformula sua hipótese a partir da existência da pulsão de morte, sem abandonar o princípio do prazer. Nesse momento, temos um inconsciente não apenas topológico, mas dinâmico e econômico. Freud desenvolve a segunda tópica, tendo como base os complexos de édipo e de castração. Ele inclui a função tópica estrutural dos componentes do aparelho psíquico. Determina que o Isso (ID) é o local onde são geradas as pulsões, tanto de vida quanto de morte. Originado do ID, temos o eu (ego) cuja função é lidar com o princípio da realidade factual e a realidade psíquica (nossas pulsões e fantasias). Nessa etapa da teorização, Freud também conclui que as normas sociais são inconscientemente introjetadas, levando a formação do supereu (superego), o herdeiro do complexo de édipo, a partir de uma parte do ego. Nesse momento, no inconsciente, o ideal do ego (superego) é formado pelas regras morais e sociais de cada época, juntamente, com o que representa a imagem do eu perante o grande outro (pais, professores e sociedade). Esse superego, mais tarde, seria introduzido por Lacan, a partir da ideia do inconsciente estruturado como linguagem, na forma de lei, através da castração, produzido pela função paterna: o nome do pai. Freud, no final de sua obra (1927-1939), mostrou que com o processo civilizatório, resultado da castração e formação do superego, a violência e a barbárie foram reduzidas. O aparelho psíquico da segunda tópica explicou de forma mais eficiente o controle inconsciente das pulsões sexuais infantis. Entretanto, todos os mecanismos psíquicos que Freud demonstrou, produziu uma sociedade neurótica. Onde o conflito entre a lei (superego) e as pulsões inconsciente (ID), mediados pelo ego, sempre se apresenta na forma de angústia e sintomas.
E agora Lacan?
Lacan, nos trouxe uma possibilidade de sairmos um pouco do engodo que Freud nos mostrou na primeira e segunda tópica, por uma possível terceira tópica, sistema RSI: real simbólico e imaginário. É o real que não cessa de não se inscrever, o real do corpo, antes da linguagem. A possibilidade do corte, da psicanálise cirúrgica que usa o bisturi da palavra. Aquilo que vai além do simbólico e do imaginário, que nos permite, como diria Forbes (2012) a invenção, pelo qual se pode lidar com a neurose e com os novos sintomas.
O que é mais curioso é estarmos produzindo uma IA que segue a segunda tópica Freudiana. Um exemplo disso, é que ao solicitar para o ChatGPT que faça um modelo de uma mulher bonita, através da associação livre de ideias encontradas na rede, temos uma resposta nada inventiva. A resposta será de uma imagem caucasiana, de cabelos escuros, curvilínea e olhos claros. Seria essa uma formação neurótica do belo? Estaria ela seguindo a lei, a ordem do pai? Será um dia possível introjetar na IA a terceira tópica? A real invenção, além do simbólico e imaginário? Por enquanto, a função de execução das máquinas depende do algoritmo “superegóico” introjetado, apresentado, entre outras formas, através do aprendizado de máquinas. O que podemos fazer é tentar escutar qual linguagem escolheremos para alimentar a IA. Se não escutarmos os algoritmos que estão em rede, velhos sintomas neuróticos serão reproduzidos, com os novos, e como diria o Chico, não o da recente traição, mas o Buarque de Holanda: “sem a cachaça ninguém segura esse rojão”. E aja Lacan!
No campo teórico não exite a terceira tópica, ela é apenas uma invenção!